Sujar-me na terra negra, beijar depois a água na concha das mãos, enquanto a aragem da serra lambe os poros do corpo. Cantar, inventar músicas que fazem e desfazem sonhos. A bola a saltar, a corda a saltar, o coração a saltar, o caminho a ficar cansado ao fim do dia e a mão a dar-se a quem se fez bem e a quem se fez mal, a quem nos fez mal e a quem nos fez bem. Quantos nos sorriram, quantos se nos deram, quantos nos esqueceram, quantos nos enjeitaram? O corpo a crescer, a alongar-se no tempo e tudo a ser ainda o que foi dantes. E há sempre alguém para além de nós que não nos quer deixar, que nós não queremos que nos deixe. Mas os dias têm um dia em que o corpo se amarrota e desintegra, esmagado pela pequenez da existência. E a vida, para quem continua, passa a ter outro sentido.
Agora, se quiserem, venham comigo ao anteontem de mim e deixem-me falar um pouco mais. Não tenho muito para vos contar, nada que interesse por aí além, mas não consigo conter esta força que me arrasta. Digo-vos ainda que, se houver por aí alguém que queira trocar comigo, apesar de não ser uma troca justa, me dou de boa vontade.
A questão é a seguinte:
Como sempre, hoje fui à taberna para comprar cigarros. Malditos cigarros, já nem para apagar um fósforo me servem os pulmões. O ti Zé não me esperava à porta. Estranhei-lhe a ausência. Quando chegava, dava-lhe os bons dias e às vezes dois dedos de conversa. Ouvia mal, coisas da guerra de África, dizia-se, granadas que o ensurdeceram, mas sabia o que queria dizer-lhe e respondia-me como se a minha voz lhe tocasse. Há pessoas que parecem esperar-nos sempre, só por estarem no dia a dia do nosso olhar. De repente, veio-me à ideia: que diabo, ele ontem também não estava e dois dias seguidos não era habitual!
Foi uma mulher, ar empalidecido, olheiras profundas, que me atendeu. Enquanto passava a mão pelo cabelo e com o vagar das horas que se repetem sem quase darmos conta de que é o tempo a passar, perguntei-lhe que era feito do ti Zé. Acrescentei, com um sorriso descomposto, a querer fazer ironia, que talvez tivesse adoecido, que a idade não perdoa e que todos vamos morrendo um pouco todos os dias. Conversa fiada, claro. O desafio da voz, quando nos queremos ouvir a nós próprios, asfixia-nos em banalidades. De resto, numa taberna nem sempre tem de haver conversas. Um copo de bagaço, no seu silêncio, na sua aparente insignificância, pode ser um bom companheiro para um monólogo. Palavras soltas, deixas que talvez alguém queira apanhar.
Ela, sem quase me olhar, voz choramingas, respondeu-me: mas ele não morreu um pouco. Vai hoje a enterrar.
Texto de Alexandre Marta
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